1850
Pierre Mabilde convive entre indígenas Kaingang no Rio Grande do Sul
Muitos foram os contatos entre indígenas e imigrantes durante o século 19. O Rio Grande do Sul da época, não fugiu à regra. Os casos se intensificaram especialmente após a chegada do imigrante alemão para ocupar territórios indígenas considerados ‘vazios’ pelo Império Brasileiro e governantes da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Desses conflitos restam hoje narrativas documentais que contam como os ataques ocorreram nas colônias de imigração.
Entre exemplos conhecidos, cita-se o assalto do indígena Kaingang João Grande e do seu grupo, em janeiro de 1852, à família do colono Pedro Watterpuhl, na Colônia Mundo Novo (no Vale do Rio dos Sinos). No episódio, foram feitas prisioneiras duas mulheres e três crianças. Outro fato aconteceu em dezembro de 1867, quando indígenas atacaram a casa de Lambertus Versteg, na Colônia Santa Maria de Soledade (Colônia de São Leopoldo). Na ocasião, a esposa de Lambertus e os dois filhos do casal foram sequestrados.
Contudo, talvez seja o ataque que envolveu Pierre François Alphonse Booth Mabilde o mais famoso de todos. O acontecimentos está narrado detalhes no livro Apontamentos sobre os indígenas selvagens da Nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande do Sul – 1836-1866, organizado por duas bisnetas de Mabilde, em cuja obra é afirmado que o avó foi mantido prisioneiro pelos indígenas Kaingang por um período de dois anos.
Mabilde e seus apontamentos
O engenheiro Pierre François Alphonse Booth Mabilde nasceu em 1806 na Bélgica. Veio para o Brasil em 1833, com 26 anos de idade. A sua primeira parada no Brasil foi na cidade do Rio de Janeiro, quando adotou, abreviadamente, o nome de Alphonse Mabilde. Em março de 1848 obteve a carta de naturalização.
Depois que se radicou no Rio Grande do Sul, Mabilde desenvolveu uma série de atividades: prestou serviços ao governo provincial rio-grandense, desempenhou algumas funções em cargos públicos, como engenheiro e agrimensor das Colônias, juiz Municipal de Órfãos, Delegado de Polícia e Subdelegado do 1º Distrito de São Leopoldo, tornou-se tenente-coronel da Guarda Nacional, comandante do 2º Batalhão da Guarda Nacional, comandante da Guarda Nacional, bem como membro honorário da Associação Médico-Farmacêutica de Porto Alegre. Além dessas atividades, entre 1855 e 1859 Mabilde exerceu o cargo de vereador na Câmara de Vereadores de São Leopoldo.
Casou-se três vezes com imigrantes alemãs: em primeiras núpcias com Christina Maria Magdalena Metz, de quem não teve filhos, viúvo, casou-se em segundas núpcias com Ana Maria Ertel, com a qual teve dois filhos, viúvo pela segunda vez, casou-se novamente, agora com sua cunhada, Maria Luísa Ertel, com quem teve sete filhos. Faleceu em São Leopoldo no ano de 1892 aos 86 anos de idade.
Pierre François Alphonse Booth Mabilde
Fonte: Mabilde (2009)
O contato
Alphonse Mabilde ficou conhecido a partir de relatos do contato que teve com indígenas Kaingang, também chamados de Coroados. Os primeiros relatos de Mabilde em relação aos Kaingang foram publicados após a sua morte, em duas partes, nos anos de 1897 e 1899, pelo Annuario do Estado do Rio Grande do Sul. Em 1983, duas bisnetas do engenheiro, May Mabilde Lague e Eivlys Mabilde Grant, organizaram a obra Apontamentos sobre os indígenas selvagens da Nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande do Sul – 1836-1866, a partir de relatos de Mabilde. Na biografia, relatam (1983, p. 225):
Quando, como Engenheiro e Agrimensor das Colônias, abria uma estrada, ao cair de uma tarde, foi surpreendido e preso, com todos os homens que com ele trabalhavam, por uma tribo de selvagens coroados (atuais caigangues).
No livro abordam a assimilação da cultura dos indígenas, a fuga e o retorno de Mabilde (1983, p. 226/227):
Começou a colher dados sobre os usos, costumes e crenças, fazendo o possível para falar o idioma indígena. Quando conseguiu falar com os selvagens, estes passaram a vigiá-lo menos. Era só seguido e vigiado por um jovem índio de, mais ou menos, 20 anos de idade. Filho de um cacique subordinado, o jovem Ucuity foi-se tornando seu amigo. Conquistou, totalmente, a amizade de seu guarda a quem contava as maravilhas da civilização, da vila de São Leopoldo, das casas que construía, das pontes para atravessar os rios sem precisar nadar etc. Tudo o que contava, totalmente desconhecido para o rapaz, despertava-lhe a curiosidade, ouvindo, atentamente; é até lhe perguntando o que não entendia. Acabou por propor ao jovem irem até S. Leopoldo, onde lhe mostraria tudo, voltando depois para as matas, trazendo muita coisa boa com eles. Deslumbrou e conquistou de tal maneira a confiança de Ucuity que, com a cumplicidade do mesmo, conseguiu fugir, após mais de dois anos de cativeiro. Voltou, trazendo vasto material para estudo: pedras preciosas, semi preciosas, amostras de plantas que lhe despertaram a curiosidade etc. Ucuity impôs, como condição para vir com ele, trazerem um filhote de onça a que dedicava particular afeto. Chegaram em São Leopoldo, onde encontrou a esposa e filhos cobertos de luto, pois fora dado por morto. Grande foi a alegria, quando reapareceu entre os seus familiares e conhecidos, com o selvagem e a onça.
Relatam ainda a trágica morte de Ucuity, em São Leopoldo. O jovem foi atacado e morto pela própria onça que tanto cuidava. Afirmam que Mabilde, depois da fuga, retornou várias vezes às matas, acompanhado de homens armados, para defendê-lo em caso de ataque de indígenas e animais.
Prisão questionada
A captura de Alphonse Mabilde é vista com certa desconfiança por alguns pesquisadores, mas, de acordo com Guilhermino Cesar, que faz a prefácio do livro (1983, p. 1-4), e das bisnetas organizadoras, Mabilde viveu como prisioneiro dos indígenas Coroados entre 1836 e 1838, tendo elaborado os “apontamentos” na forma de um texto com 63 notas entre os anos de 1836 a 1866.
Conforme Guilhermino Cesar (1983, p. 2),
“Com efeito, achando-se na região de Santa Cruz, ocupado com os trabalhos de abertura de estradas, foi ele surpreendido por um grupo de selvagens, que prenderam e levaram consigo para os matos.
Durou mais de dois anos o seu cativeiro, tempo em que Mabilde não ficou, porém, inerte. Com astúcia e bondade, impôs-se logo a seus captores, ensinou-lhes muitas coisas úteis, e aclimado fez observações etnográficas e antropológicas de maior importância, as quais não foram logo comunicadas ao público”.
Os fatos são contestados, pois no livro, em nenhum momento, Mabilde descreveu o sequestro. Além disso, não faz nenhuma indicação de detalhes e do destino dos outros homens que estavam trabalhando. Relata apenas que foi aprisionado sendo reconhecido como o “chefe dos brancos”, levado e tornado cativo dos Coroados.
Além disso, o linguista Wilmar da Rocha D‟Angelis (2006) afirma que o sequestro sequer foi comentado na documentação provincial do período, como ocorreu com outros eventos dessa natureza, ataques e confrontos entre imigrantes e indígenas no Rio Grande do Sul. Nesse sentido, ele questiona como um engenheiro agrimensor da Província pode ter ficado tanto tempo como prisioneiro sem gerar nenhuma reação do governo.
Curiosidade
O termo Coroados, conforme Mabilde, se refere ao uso de corte alto nos cabelos, em formato de coroas.
Referências
ALMEIDA, Carina S. de; NÖTZOLD, Ana L. V. A memória da paisagem: os Kaingang e as relações entre cultura e natureza nos “Apontamentos” de Mabilde. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo,2011.
DORNELLES, Soraia S. De Coroados a Kaingang: as experiências vividas pelos indígenas no contexto de imigração alemã e italiana no Rio Grande do Sul do século XIX e início do XX. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
LAROQUE, Luís F. S.; MACHADO, Neli T. G.; VEDOY, Moisés I. B. Movimentações envolvendo Indígenas Kaingang e imigrantes alemães em territórios da Bacia Hidrográfica do Caí. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 24, 2019.
MABILDE, Adriano B. Estaleiro Mabilde: as relações com os funcionários e o Estado (1896-1943). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.