
10.000 anos atrás
Chegada dos caçadores e coletores no Vale do Taquari
Entre 12.000 e 9.000 anos atrás, o aumento da umidade e do calor no sul do Brasil estimulou o desenvolvimento de florestas até então restritas aos vales de rios. As pradarias, que antes dominavam o cenário pleistocênico, ficaram restritas às altitudes mais elevadas do Planalto e à região sudoeste do Rio Grande do Sul. No litoral, a expansão da Mata Atlântica só passou a ocorrer a partir de 5.000 anos, quando cessaram as ingressões marinhas sobre a planície costeira.
Essas mudanças ambientais estimularam os grupos humanos a desbravar e povoar espaços até então inéditos. Há 10.000 anos, bandos de caçadores e coletores adentraram áreas florestadas da encosta e da borda sul do Planalto, no leste e nordeste do Rio Grande do Sul, ocupando regiões entre os vales do Jacuí, Pardo, Taquari-Antas, Caí e Sinos.
Esses povos habitaram, com frequência, abrigos sob-rocha associados aos morros testemunhos de arenito, especialmente aqueles localizados na região da Depressão Central Gaúcha. Conforme os pesquisadores, essas áreas constituem marcos na paisagem sistematicamente ocupadas e utilizadas como refúgios residenciais ao longo de muitas gerações. Além dos abrigos sob-rocha, os caçadores e coletores também viviam em acampamentos a céu aberto dispersos em uma ampla paisagem.

Pontas de projétil morfologicamente associadas aos caçadores e coletores das áreas de floresta do sul do Brasil.
Fonte: Bueno e Dias (2015, p. 132).
Foi nesse contexto cronológico de 10.000 anos, muito provavelmente, que o Vale do Taquari recebeu os seus primeiros habitantes. Por enquanto, não há datas antigas obtidas especificamente para o Vale, mas sítios arqueológicos identificados em municípios próximos, e que são muito parecidos aos do Vale do Taquari, dão boas pistas de como esses caçadores de áreas de floresta viviam.

Sítio RS-T-17, um abrigo sob-rocha arenítica utilizado por caçadores e coletores no Vale do Taquari, ainda sem datação. Município de Paverama/RS.
Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Univates.
Esse é o caso do sítio RS-TQ-58, também conhecido como Garivaldino, um abrigo sob-rocha escavado no arenito da Formação Botucatu. Identificado na década de 1980 pelo arqueólogo Pedro Augusto Mentz Ribeiro, hoje está localizado no município de Brochier/RS. Possui aproximadamente 21 metros de largura, 8 de profundidade e 8 de altura. O curso d’água mais próximo é um pequeno córrego distante cerca de 40 metros. Este curso d’água se lança no arroio Santa Cruz que, por sua vez, faz ligação com o rio Taquari-Antas. Os níveis mais antigos deste sítio ultrapassam 10.000 anos, já os mais recentes chegam até o último milênio.

Abrigo sob-rocha do sítio Garivaldino (RS-TQ-58). Município de Brochier/RS.
Fonte: João Carlos Moreno de Souza.
A análise dos vestígios arqueológicos recuperados no Garivaldino revelam uma impressionante estabilidade cultural que perdurou por milênios e perpassou muitas gerações humanas. Neste sítio foram recuperados 8742 artefatos de pedras, dos quais 941 são pontas, fragmentos de pontas ou pré-formas de pontas de projétil. As pontas de projétil, cuja impressionante variedade de formas e tamanhos sugere diversidade de estratégias de caça, eram confeccionadas com a exploração de matérias-primas locais, como arenitos e calcedônias.
Além dos materiais de pedra, no Garivaldino foram encontrados inúmeros artefatos ósseos, incluindo pontas ósseas, contas de colares, dentes de tubarões (que sugere visitas ao litoral) e pressores feitos com partes das galhadas de cervídeos. A importante coleção de vestígios de fauna deste sítio também revelou aspectos da dieta alimentar desses povos, demonstrando que entre os animais caçados e capturados estavam mamíferos, como porcos do mato, roedores, cervídeos e primatas; répteis, como lagartos; anfíbios; peixes e alguns tipos de aves, como as codornas.

Registro da década de 1980 das primeiras escavações no sítio Garivaldino, realizadas sob a coordenação do arqueólogo Pedro Augusto Mentz Ribeiro.
Fonte: Acervo documental de Pedro Augusto Mentz Ribeiro (1937-2006).
Garivaldino parece ter tido pelo menos três diferentes períodos de ocupação. O primeiro, identificado entre 240 e 140 centímetros de profundidade, tem sinal de ocupação datado há mais de 10.000 anos. Nesse nível, a produção intensa de pontas e outros artefatos de pedra vai até 9.000 anos, quando a produção dos artefatos entra em declínio.
O segundo período foi recuperado entre 140 e 60 centímetros, e é definido por um novo e súbito aumento na produção de artefatos que se mantém estável até próximo de 8.000 anos.
Por fim, o terceiro período, recuperado de 60 centímetros até a superfície, não possui datação, mas é representado por uma produção muito baixa de artefatos de pedra. Já nos níveis superficiais, foram identificadas cerâmicas associadas aos Jê do Sul, um povo que chegou na região milênios depois dos caçadores.

Pontas de projétil do sítio Garivaldino recuperadas entre 110 e 120 centímetros de profundidade, nível datado entre 9.000 e 8.000 anos atrás.
Fonte: João Carlos Moreno de Souza.
Referências
BUENO, Lucas; DIAS, Adriana. Povoamento inicial da América do Sul: contribuições do contexto brasileiro. Estudos Avançados, São Paulo, SP, 29(83), 2015.
MINGATOS, Gabriela S.; OKUMURA, Mercedes. Cervídeos como fonte de matéria-prima para produção de artefatos: estudos de caso em três sítios arqueológicos associados a grupos caçadores-coletores do sudeste e sul do Brasil. Latin American Antiquity, Cambridge, v. 31, n. 2, 2020.
MORENO DE SOUSA, João C. Tecnologia de ponta a ponta: Em busca de mudanças culturais durante o Holoceno em indústrias líticas do Sudeste e Sul do Brasil. 2018. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
ROSA, André O. Análise zoorqueológica do Sítio Garivaldino (RS-TA-58) Município de Montenegro, RS. Pesquisas, Antropologia. São Leopoldo, RS, n. 67, 2009.