
12.000 anos atrás
Povoamento do Rio Grande do Sul por caçadores e coletores
As ocupações humanas mais antigas do Rio Grande do Sul estão associadas a povos caçadores e coletores especializados na produção de artefatos de pedras lascada, como pontas de projétil de diferentes tamanhos e formas (triangulares, pedunculadas, foliáceas), raspadores, lâminas, choppers, trituradores, bigornas com concavidades (‘quebra-coquinhos’), afiadores, bem como alguns artefatos polidos, tais como boleadeiras e machados. A distribuição geográfica desses artefatos ocorre tanto no bioma Pampa, na Campanha Gaúcha, como nas planícies e nos planaltos cobertos pela Mata Atlântica.
Conforme os dados disponíveis hoje, essa jornada iniciou há 12.000 anos, quando os grupos adentraram num vasto território ainda não explorado, que muito tempo depois viria a se chamar Rio Grande do Sul. Esses primeiros povoadores se estabeleceram nas margens do Rio Uruguai e de seus afluentes, tanto na região oeste (entre os municípios de Quaraí, Uruguaiana, Alegrete e São Borja) como no norte gaúcho (município de Alto Alegre). Por um longo período de tempo, parece terem ficado restritos a esses espaços.

Paisagem pampeana ocupada pelos primeiros habitantes do Rio Grande do Sul. Município de Alegrete/RS.
Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Univates.

Paisagem pampeana ocupada pelos primeiros habitantes do Rio Grande do Sul. Município de Quaraí/RS.
Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Univates
Os acampamentos temporários desses primeiros exploradores são encontrados hoje em sítios arqueológicos a céu aberto, formados por eventos únicos ou por longas sequências cronológicas com sucessivas camadas de ocupação. Esses sítios com longas camadas sempre estão perto de rios, arroios, córregos, lagos ou riachos que concentram múltiplos recursos alimentares, como mamíferos, peixes, répteis e aves, bem como água fresca, lenha e rochas silicificadas para produzir artefatos.

Paisagem habitada por caçadores e coletores no Alto Rio Uruguai, entre Santa Catarina e o Rio Grande do Sul.
Fonte: Foz do Chapecó Energia S.A.
Um exemplo pode ser visto na porção média do Rio Uruguai, entre Santa Catarina (município de Águas de Chapecó) e o norte do Rio Grande do Sul (município de Alto Alegre). As pesquisas nesta área revelaram uma sucessão de micro níveis arqueológicos formados por ocupações curtas estabelecidas às margens do rio que se repetiram ao longo de milênios.
As primeiras ocupações, com datas anteriores há 11.000 anos, são discretas e caracterizadas por poucas evidências arqueológicas, especialmente resíduos de lascamento. Uma ocupação mais densa e recorrente aparece entre 10.000 e 9.000 anos para ambas as margens do Rio Uruguai, caracterizada por repetidas instalações de curta duração. São encontradas lascas de diferentes tamanhos, pontas de projétil e lâminas que só ocorrem neste período e local. Adiante, já em um nível datado de 8.000 anos, foram recuperadas lascas de tamanho pequeno e médio feitas com matérias-primas variadas, como basalto, arenitos, calcedônia e o quartzo, e também pontas de projétil e artefatos bifaciais grandes.

Lâminas de pedra lascada produzidas entre entre 10.000 e 9.000 em sítios do Alto Rio Uruguai.
Fonte: Lourdeau et al. (2016).
Há 12.000 anos, vivia-se a transição do Pleistoceno para o Holoceno, evento que marca a passagem da última era glacial para o período geológico atual, que é mais quente e úmido do que o período anterior. O evento ocorreu há cerca de 11.700 anos e foi caracterizado pelo rápido aquecimento global e recuo das geleiras, implicando na extinção da megafauna, mudanças na vegetação e no comportamento das sociedades humanas.
No sul do Brasil, por exemplo, o clima era frio e seco durante o pleistoceno, havia maior incidência de neve no Planalto e o nível do mar estava muito abaixo do atual, com grandes concentrações de água retidas nos glaciais. Os campos e pradarias dominavam a paisagem, e a densa e diversa Mata Atlântica ainda não existia. A fauna existente incluía mamíferos de grande porte, a chamada megafauna, que hoje está extinta. Alguns dos animais da megafauna que habitavam o Rio Grande do Sul eram as preguiças terrícolas gigantes, os gliptodontes (animais semelhantes a tatus), os mastodontes (parentes dos atuais elefantes), os macrauquenídeos (animais que pareciam uma mistura entre cavalo e anta), felídeos conhecidos como tigre dente-de sabre e muitos outros.
Com o passar do tempo, o clima mais ameno alterou a fauna e a flora, inclusive ocasionando a extinção da megafauna, e outras regiões tornaram-se atrativas para os caçadores e coletores. Assim, a partir de 10.000 anos, seguindo o curso dos grandes rios, esses povos passaram a habitar áreas distantes, especialmente os abrigos sob-rocha da encosta e da borda do Planalto, junto dos vales do Jacuí, Taquari-Antas, Caí e Sinos. Mais tarde, por volta de 6.000 anos, já estavam espalhados pelos campos de altitude e litoral.

Abrigos sob-rocha da encosta do Planalto explorados por caçadores e coletores. Município de Relvado/RS.
Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Univates.
Uma vez estabelecidos nos ambientes de Mata Atlântica, os caçadores passaram a explorar recursos diversificados próprios dos ecossistemas florestais. A dieta alimentar generalista destes povos (que não é restritiva e não exclui nenhum grupo alimentar), era suprida com caçadas e capturas oportunistas de animais de médio e pequeno porte, como tatus, veados, porcos do mato, preás, lagartos, aves e moluscos, bem como com a coleta de frutos e sementes variadas.

Pontas de projéteis recuperados no Alto Rio Jacuí, Rio Grande do Sul, sem procedência definida.
Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Univates.
Durante muito tempo, o modo de vida dos caçadores e coletores foi dominante no Rio Grande do Sul. Esse cenário muda a partir de 4.000 anos, quando sambaquis passam a ser construídos no litoral norte gaúcho e, um pouco mais tarde, por volta de 3.000 anos, surgem cerritos junto às áreas alagadiças do sistema de lagoas no sudeste gaúcho. Embora alguns sítios de caçadores e coletores possuam datas próximas do período colonial, a partir de 2.000 anos fica mais difícil identificar a presença desses grupos no registro arqueológico. Uma das explicações é que podem ter perdido espaço para outros povos, como os ceramistas Jê do Sul e Guarani, ou mesmo se modificado.
Referências
BUENO, Lucas; DIAS, Adriana. Povoamento inicial da América do Sul: contribuições do contexto brasileiro. Estudos Avançados, São Paulo, SP, 29(83), 2015. CATÁLOGO da exposição organizado pelo Museu da Ufrgs. 12000 anos de história: arqueologia e pré-história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ufrgs, 2013.
DIAS, Adriana S.; LOURDEAU, Antoine. A ponta do iceberg: diversidade cultural e indústrias líticas bifaciais do Sul do Brasil no Holoceno Inicial. In: BUENO, Lucas; DIAS, Adriana S (Orgs.). Arqueologia do povoamento americano: contribuições a partir do contexto brasileiro. Curitiba: Editora Appris, 2025.