
4.000 anos atrás
Primeiros sambaquis são construídos no Rio Grande do Sul
Ao longo de quase toda a costa brasileira são encontrados sítios arqueológicos conhecidos como sambaquis. Caracterizados como amontoados de conchas, variam bastante de tamanho e altura. Especialmente no litoral sul de Santa Catarina, podem atingir dimensões impressionantes de até 70 metros de altura.
Geralmente exibem uma sucessão estratigráfica formada por camadas de conchas intercaladas por estratos finos e escuros de solos orgânicos. Entre essas camadas é comum a presença de fogueiras, restos de comida e enterramentos humanos. Os enterramentos, quando presentes, são acompanhados de artefatos de pedra ou osso, oferendas alimentares e fogueiras.

Sambaqui localizado no litoral sul de Santa Catarina, em Laguna.
Fonte: Foto de Jéssica Cardoso. Agência Fapesp.

Escavação arqueológica de sambaqui localizado no município de Laguna/SC.
Fonte: Foto de André Ganzarolli Martins (Creative Commons).
Os artefatos encontrados nos sambaquis diferem muito daqueles dos caçadores das áreas de floresta. Nos sambaquis, são mais comuns objetos relacionados ao modo de vida pescador, como anzóis feitos com ossos e pedras polidas modificadas para servir como pesos de rede. Também é comum a presença de polidores, pilões e mãos de pilão para o processamento de comidas, artefatos de pedra lascada, pequenas lascas retocadas, pingentes e adornos em ossos. Os zoólitos, estatuetas de pedra polida em forma de animais (aves marinhas, peixes, tubarões e muitos outros), talvez estejam entre os objetos mais famosos deixados por essas populações.

Zoólito em forma de tubarão localizado no litoral sul do Rio Grande do Sul.
Fonte: Acervo do LEPAARQ/UFPel.
Muito já se especulou sobre a função desses montículos. Arqueólogos das gerações passadas, em especial dos anos 1960 e 1970, sugeriam que os montículos seriam o resultado do progressivo acúmulo de restos de alimentação de pequenos bandos de coletores de moluscos e pescadores que se movimentavam sazonalmente pelo litoral.
No entanto, o avanço das pesquisas demonstrou que os montículos apresentam diversidade de formas, tamanhos e características, e que poderiam cumprir funções variadas, desde habitações até cemitérios. Além disso, descobriram que muitos deles foram intencionalmente construídos em eventos únicos ou ao longo de mil anos ou mais. Muitos dos grandes sambaquis parecem ter sido construídos como cemitérios coletivos para que os ancestrais enterrados fossem cultuados durante muitas gerações. Como são monumentos facilmente reconhecíveis na paisagem, muito provavelmente também tinham como função demarcar territórios e paisagens.

Sambaqui de grandes proporções localizado em Jaguaruna, Santa Catarina (Foto de Alexandro Demathé).
Fonte: Sapienza Arqueologia (Creative Commons).
Poucas vezes os sambaquis são encontrados isolados na paisagem. Geralmente aparecem em conjuntos de montículos grandes e pequenos organizados ao redor das lagunas próximas do mar. As lagunas, ambientes produtivos e ricos em recursos naturais, parecem terem sido reconhecidas pelas comunidades sambaquieiras como os lugares centrais do universo econômico e social.
Com relação às características econômicas, os dados arqueológicos mostram que os sambaquieiros ocuparam o litoral durante todas as estações do ano, mantendo uma sólida e diversa dieta alimentar formada por pescados capturados no interior das lagunas. Também caçavam espécies terrestres, como veados, antas, roedores, aves, e usavam muitos recursos marinhos, como berbigões, moluscos, baleias, focas, leões-marinhos. Além disso, é muito provável que desde cedo já cultivassem alimentos em pequena escala e manejassem a vegetação do entorno.

Praia de Imbituba, litoral sul de Santa Catarina. Ambiente explorado pelos sambaquieiros.
Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Univates.
Essas populações possuíam um sistema de assentamento estável, sedentário e demograficamente expressivo, formado por pescadores, caçadores e coletores que partilharam espaços em comum ao longo de sete milênios, mais ou menos entre 8.000 e 1.000 anos atrás. Nesses sete milênios, o crescimento das comunidades sambaquieiras teve início a partir de 6.000 anos, resultando em uma formidável expansão entre 4.500 e 2.000 anos atrás. Foi ao longo desse período de maior expansão, aproximadamente há 4.000 anos, que os sambaquieiros chegaram no litoral do Rio Grande do Sul.
Os sambaquis do Rio Grande do Sul, menores do que os do litoral sul de Santa Catarina, se distribuem desde Torres, no litoral norte, até Mostardas, no litoral central. Construídos sobre imensos cordões de areia que ao longo do tempo formaram a costa gaúcha e originaram as diversas lagoas do nosso litoral, tinham à sua disposição tanto os recursos do mar quanto das lagoas.

Paisagem ocupada pelos sambaquieiros no litoral norte do Rio Grande do Sul. Vista do sítio Arroio Seco 14 para a Serra Geral. Município de Arroio do Sal/RS.
Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Univates.

Sítio Arroio Seco 06, um sambaqui pequeno localizado no litoral norte do Rio Grande do Sul. Município de Arroio do Sal/RS.
Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Univates.
Enquanto que no litoral norte gaúcho os sambaquis de maior porte parecem se concentrar mais ao sul, nas bordas das lagoas são numerosos os concheiros rasos e pequenos. Alguns deles exibem rica diversidade de restos de fauna de ambientes lagunares, com predomínio de peixes como bagre e miraguaia, mas também há vestígios de caça de maior porte, com destaque para os cervídeos. Nos concheiros rasos encontrados no Rio Grande do Sul, também é comum a presença de enterramentos humanos.

Enterramento humano em concheiro localizado no litoral norte do Rio Grande do Sul. Sítio Vento Frio I. Município de Capão da Canoa/RS.
Fonte: Campos et al. (2023).
Os motivos que levaram ao final da era sambaquieira permanecem pouco compreendidos. Por enquanto, os dados arqueológicos têm sugerido que o desaparecimento ocorreu ao redor do ano mil e foi influenciado, progressivamente, pela chegada dos povos Jê do Sul e Guarani ao litoral. De fato, estudos bioarqueológicos têm demonstrado fluxos genéticos de sambaquieiros entre os Jê, e muitos sambaquis apresentam cerâmicas Guarani e Jê em seus estratos superiores, mas ainda perduram muitas dúvidas sobre esse tópico.
Referências
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DEBLASIS, Paulo A. D.; GASPAR, Maria D. Os sambaquis do sul catarinense: retrospectiva e perspectivas de dez anos de pesquisas. Arqueologia Hoje, Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus, BA, v. 11, n. 20,21, 2009.
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