
1626
Jesuítas espanhóis fundam a primeira redução no Rio Grande do Sul
Por volta do século 16, para os europeus, colonização e evangelização do mundo eram conceitos muito próximos. Assim, por muitas décadas, várias ordens religiosas migraram da Europa para a América, e entre essas ordens encontram-se a de São Francisco, São Jerônimo, São Domingos (ou Ordem Dominicana) e Nossa Senhora das Mercês, além da congregação religiosa de maior importância para a colonização da América do Sul, a Companhia de Jesus.
A Companhia de Jesus foi fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris, liderados pelo basco Inácio de Loyola. Além de Loyola, o grupo era formado por Pedro Fabro, Francisco Xavier, Alfonso Almeron, Diogo Laynez, Nicolau Bobedilla, todos espanhóis, mais o estudante português chamado Simão Rodrigues. Em 1537, eles foram ordenados padres pelo bispo de Arbe, na cidade de Veneza, Itália. A Companhia foi confirmada em 1540 pelo Papa Paulo III, por meio da publicação da Bula Regimini Militantis Ecclesiae aprovando a “Sociedade de Jesus”.
Conhecida por ser uma organização com disciplina rígida, servia ao papa com muita lealdade, sem questionamentos, cujo lema era Ad Majorem Dei Gloriam, traduzindo, “Tudo por uma maior glória de Deus”. Lutou contra o avanço do protestantismo na Europa, além da realização de missões de jesuítas na Ásia, África e América do Sul.
Os jesuítas na América
Os jesuítas chegaram à América do Sul em 1549, com a intenção de implementar a bula pontifícia de 1537 do Papa Paulo III, a Sublimis Dei, que proibia a escravidão dos povos indígenas e buscava resguardar a liberdade e direito à propriedade. No Brasil, o desembarque inicial aconteceu na Bahia. Já no sul do Brasil e nos territórios vizinhos (Paraguai, Argentina, Uruguai), a chegada dos jesuítas aconteceu no início do século 17.
Nessa região, depois de várias décadas de contato com os europeus, os indígenas encontravam-se sob duas situações: a subjugação para o sistema de encomiendas espanholas, quando eram forçados a trabalhar sem remuneração para os colonizadores que haviam tomado as terras, ou a perseguição implacável realizadas pelos bandeirantes escravizadores de indígenas de São Vicente, atual São Paulo.

Gravura de encomendero capturando indígena na América espanhola.
Fonte: Codex Kingsborough, 1550 (Domínio Público).
A chegada dos jesuítas trouxe consigo uma nova proposta: a formação de aldeamentos (ou reduções), organizados e administrados pelos padres, com o intuito de catequizar os indígenas na fé católica. As reduções mantinham economia autossuficiente e funcionavam como comunidade. Embora cada redução tivesse um desenho diferente, todas seguiam um padrão básico: uma praça central que tinha em uma das extremidades a igreja, um cemitério comunitário adjacente e uma escola ao lado da qual os jesuítas viviam. No sul do Brasil, os povos Guarani estabelecidos em grandes assentamentos nas matas subtropicais foram os principais indígenas aldeados.
Além da cristianização de indígenas, a Companhia de Jesus objetivava defender os interesses da Coroa espanhola, especialmente no combate ao avanço de Portugal na região do Prata. O projeto reducional visava, do ponto de vista da Coroa, integrar indígenas à sociedade colonial e utilizá-los como mão de obra acessível. Sob a ótica dos jesuítas, os indígenas poderiam mudar seus ‘costumes bárbaros e selvagens’ e de ‘infidelidade’ ao viver em uma sociedade nos moldes europeus. Do ponto de vista indígena, de certa forma, as reduções se mostraram como um espaço alternativo, embora limitado, à sobrevivência frente às investidas dos colonos e bandeirantes. Mesmo assim, nem todos indígenas contactados aceitaram a subjugação espiritual e social das reduções. Foram muitas as investidas de resistência indígena contra os jesuítas.
A fundação das reduções no Rio Grande do Sul
Na América espanhola, em julho de 1626, o governador de Buenos Aires, Francisco de Céspedes, solicitou ao Padre Roque González de Santa Cruz para que a Companhia de Jesus inicie o processo de conversão e a fundação de reduções no que é hoje o Rio Grande do Sul. Nesse sentido, o governador Céspedes concede aos jesuítas a licença para a criação de reduções e povoações, visando converter os indígenas à fé católica e submetê-los à obediência do Rei espanhol.
Roque González faz uma incursão ao interior do Rio Grande do Sul a fim de fazer um relatório à Companhia, sobre a situação do território e de seus habitantes. No relatório, González descreve a hidrografia, a extensão geográfica e os seus habitantes. Os jesuítas tinham planos de lançar uma rede de aldeamentos desde o Rio Uruguai até o Oceano Atlântico. A partir de 1626, inicia-se o processo de fundação de reduções no território do Rio Grande do Sul. A primeira foi São Nicolau de Piratini, fundada pelo Padre Roque González em maio de 1626, a uma légua da margem direita do Rio Piratini. A redução foi abandonada em 1639 em função do ataque dos bandeirantes.

Sítio Arqueológico de São Nicolau.
Fonte: Portal das Missões (2024).

Reduções fundadas na América do Sul entre 1626 a 1634.
Fonte: Schmitz e Rogge (2010).
No Vale do Taquari não foi criada nenhuma redução. A mais próxima foi Jesus Maria, fundada pelo Padre Pedro Mola, em 1633, na margem direita do Rio Pardo, no atual município de Candelária. Formava com as reduções de São Joaquim e São Cristóvão as mais avançadas ao leste do Rio Grande do Sul.
Nessa época, os bandeirantes paulistas intensificaram suas expedições para o sul do Brasil. A falta de escravizados africanos na Capitania de São Vicente (São Paulo) fez com que expedições adentrassem o Rio Grande do Sul para escravizar um considerável número de indígenas, especialmente povos Guarani. Um dos ataques bandeirantes mais famosos aconteceu em dezembro de 1636, quando o bandeirante Antônio Raposo Tavares atacou a Redução Jesus Maria, escravizando indígenas e destruindo a redução, que depois disso foi abandonada definitivamente. Fato semelhante aconteceu com a maioria das missões jesuíticas do Rio Grande do Sul.
Depois dos constantes ataques dos bandeirantes paulistas, entre meados da década de 1630 e princípio da década de 1640, as reduções foram totalmente abandonadas no Rio Grande do Sul. Os jesuítas partiram então para a margem direita do Rio Uruguai, encerrando o primeiro ciclo de ocupação da Companhia de Jesus no Rio Grande do Sul. É preciso recordar que as reduções desta primeira fase também sofreram conflitos e tensões com indígenas, especialmente com os Guarani. Em alguns casos, a resistência indígena aos aldeamentos e à cristianização resultou na morte de padres jesuítas, como o caso de Roque Gonzáles, Afonso Rodrigues e Juan Del Castilhos.
A partir da década de 1680, novas missões são fundadas no Rio Grande do Sul, as chamadas Sete Povos das Missões, inaugurando uma nova fase que perdurou até 1768. Em 1682 foi criada São Francisco de Borja, a primeira redução dessa nova fase. Na sequência, as reduções de São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Luiz Gonzaga, São Lourenço Mártir, São João Batista e, por último, Santo Ângelo Custódio, fundada em 1707.

Sofisticado plano urbanístico da Redução de São João Batista, no Rio Grande do Sul.
Fonte: Domínio Público.

Sítio arqueológico São João Batista com ruínas da redução ainda visíveis. Município de Entre-Ijuís/RS.
Fonte: Halley Pacheco de Oliveira (Creative Commons).

Reduções fundadas entre 1682 a 1707 no Rio Grande do Sul.
Fonte: Schmitz e Rogge (2010).
Entre os fins do século 18 e começo do século 19 se dissolve o sistema das missões indígenas. As comunidades e o território são apropriados por fazendeiros de origem espanhola e portuguesa. Os povoados se arruínam, os antigos moradores se dispersam, se misturam com o resto da população colonial e desaparece o caráter de missioneiro. Dessa maneira, no Rio Grande do Sul sobraram apenas ruínas das missões.

Redução de São Miguel Arcanjo em 1846.
Fonte: Domínio Público.

Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo com ruínas ainda preservadas Município de São Miguel das Missões/RS.
Fonte: Halley Pacheco de Oliveira (Creative Commons).
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