
2005
Registro da Comunidade São Roque como remanescente quilombola
Entre os séculos 16 e 19, os quilombos formaram lugares de resistência contra o sistema de escravidão. Fruto de uma contundente reação à escravidão, os primeiros núcleos quilombolas foram organizados no contexto das rebeliões e das fugas de escravizados. Durante as fugas, homens, mulheres e crianças se deslocaram para territórios distantes das cidades maiores, em áreas afastadas e de difícil acesso para dificultar a chegada de guardas ou tropas militares, e se organizaram em comunidades que depois ficaram conhecidas como quilombos.
Enquanto algumas comunidades eram nômades, outras ocuparam territórios fixos. Havia ainda aqueles que mantiveram parcerias com povos nativos. Embora a maioria se formou em áreas rurais, havia também quilombos que se concentraram em áreas urbanas ou próximas dos núcleos urbanos.
Em todo o Brasil, esses espaços foram muito combatidos por exércitos, milícias e governos. Nesse contexto, destaca-se Palmares, no Estado de Alagoas, o maior reduto de resistência à escravidão do Brasil. Concentrando milhares de pessoas, principalmente escravos fugidos dos engenhos localizados nas Capitanias de Pernambuco e Bahia, Palmares sofreu inúmeras investidas do governo, até ser destruído no final do século 17.

Mapa da Capitania de Pernambuco com representação do Quilombo dos Palmares (à direita), confeccionado pelo pintor e gravurista holandês Frans Post em 1647.
Fonte: Frans Post, 1647 (Domínio Público).
No Rio Grande do Sul, o governo também combateu os quilombos, como em 1853, quando o presidente da Província, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, em ofício (Ofício n. 51, 1853) solicitou ao delegado de polícia de Rio Pardo uma expedição para destruir quilombos naquela vila. Na campanha, a guarnição localizou e destruiu um quilombo entre os arroios Sampaio e Taquari-Mirim, muito próximo do Vale do Taquari. Interrogados, os capturados afirmaram que recebiam armas e mantimentos em troca de serviços prestados a Eleutério Rodrigues de Lima. Na época, o presidente da província ordenou que Eleutério fosse processado por auxiliar fugitivos. Em todo o território do Brasil escravista, era comum que homens e mulheres livres apoiassem quilombolas em troca de serviços.
No Vale do Taquari, os documentos históricos também apontam eventos de resistência. Em sessão do Conselho Municipal da Vila de Taquari (Câmara de Vereadores de Taquari), realizada em 09 de abril de 1851, o secretário Manoel Fernandes da Silva leu ofício do Presidente da Província sobre o uso da Guarda Nacional para neutralizar possíveis quilombos. De acordo com a ata (1851, p. 105v e 106):
“Leo-se outro offício da Presidencia da Provincia dactado de 25 de Outubro do anno proximo passado, communicando não poder despensar do serviço da G. N.al move o n. de homens que esta Camara requisitou em officio n.o 39 de 12 daquele mez para, com o Capitão do matto do districto respectivo, baterem os escravos que se possão reunir a quaesquer quilombos; e sim que a Authoridade Policial competente deve reclamar auxílio de força, quando seja necessário, ao Comandante do Corpo de G.N.s mais proximo ao lugar onde se tratar faser essa deligencia”.
Apesar de todas as investidas contra os quilombos, muitas dessas comunidades resistiram e seus remanescentes ainda existem no Brasil. Conforme o Censo 2022, são 8.440 localidades quilombolas no Brasil, sendo que o Rio Grande do Sul possui 203. Bahia e Maranhão são responsáveis por aproximadamente 45% dessas localidades. Em relação à população quilombola brasileira, são 1.330.186 pessoas. No Rio Grande do Sul, são 17.552 pessoas quilombolas. Os municípios do Estado com maiores populações quilombolas são Porto Alegre, Formigueiro e Canguçu.

População quilombola no Rio Grande do Sul. Censo de 2022.
Fonte: Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul.
A Fundação Cultural Palmares, de acordo com o Artigo 4º do Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, é responsável pela emissão de certidões às comunidades quilombolas e sua inscrição em um cadastro geral. Conforme a Fundação:
“Conforme o art. 2º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, ‘consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida’.”
“As comunidades remanescentes de quilombo se adaptaram a viver em regiões por vezes hostis. Porém, mantendo suas tradições culturais, aprenderam a tirar seu sustento dos recursos naturais disponíveis ao mesmo tempo em que se tornaram diretamente responsáveis por sua preservação, interagindo com outros povos e comunidades tradicionais tanto quanto com a sociedade envolvente. Seus membros são agricultores, seringueiros, pescadores, extrativistas e, dentre outras, desenvolvem atividades de turismo de base comunitária em seus territórios, pelos quais continuam a lutar. Embora a maioria esmagadora encontrem-se na zona rural, também existem quilombos em áreas urbanas e peri-urbanas”.
O reconhecimento de remanescentes quilombolas no Vale do Taquari
No Vale do Taquari, são três comunidades reconhecidas até o ano de 2025. No município de Lajeado, são duas urbanas, a Comunidade Unidos do Lajeado, reconhecida em 2017 e organizada no Bairro Planalto; e a Comunidade Maria Carmem, reconhecida em 2023 e organizada no Bairro Morro 25. Em Arroio do Meio, a Comunidade São Roque, um quilombo rural localizado no distrito de Palmas, foi certificada em novembro de 2005.
A formação da Comunidade São Roque está ligada à vinda e o estabelecimento de Alcides Geraldo da Silva, o Vô Theobaldo. Quando chegou ao local que hoje é o quilombo, seu Alcides trabalhou para um agricultor em troca de moradia e comida. Aos poucos, foi conquistando seu espaço, constituiu família e conseguiu, com muito sacrifício, um pedaço de terra, originando mais tarde a Comunidade Remanescente de Quilombo São Roque.

Alcides Geraldo da Silva, o Vô Theobaldo.
Fonte: Jornal O Informativo do Vale (1983).
Para saber mais
A definição do verbete quilombo pode ser encontrada no Dicionário do Patrimônio Cultural IPHAN. Acesse aqui.
Referências
CARNEIRO, Jackeline S.; OLIVEIRA, Eliezer C. de. O conceito de quilombo na historiografia. In: Seminário de Pesquisa, Pós-Graduação, Ensino e Extensão do CCSEH – III SEPE Ética, Política e Educação no Brasil Contemporâneo. Anais, Goiânia, 2017.
FGV/CPDOC. O fim da escravidão. Atlas Histórico do Brasil. Fundação Getúlio Vargas. 2023. Disponível em: <https://atlas.fgv.br/marcos/o-fim-da-escravidao/mapas/linha-do-tempo-do-fim-da-escravidao-nas-americas>.
FUNDAÇÃO PALMARES. Certificação Quilombola. Fundação Cultural Palmares. Ministério da Cultura. 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/palmares/pt-br/departamentos/protecao-preservacao-e-articulacao/certificacao-quilombola>.
FUNDAÇÃO PALMARES. Fundação Cultural Palmares. Ministério da Cultura. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/palmares/pt-br>.
KREUTZ, Marcos R.; SCHNEIDER, Patrícia; MACHADO, Neli T. G.; SANTOS, Paula D.; SCHNEIDER, Fernanda. Arroio do Meio: entre rios e povos. 2. ed. Lajeado: Editora Univates, 2020.
MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior. Passo Fundo: Editora Upf, 2002.
MORAES, Daiane dos S. Quilombo de São Roque, Arroio do Meio, RS: memórias, histórias e resiliência cultural. 2021. Dissertação (Mestrado em Museologia e Patrimônio) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.
PIRES, Karen D. O trabalho escravo e suas implicações na paisagem urbana e rural de Taquari, Estrela e Santo Amaro/RS – final do século XIX. 2016. Dissertação (Mestrado em Ciências: Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2016.
SANTOS, Antônio B. dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: Ayó, 2019.
TAQUARI. Ata da Câmara de Vereadores de Taquari, 1851. Acervo da Câmara de Vereadores de Taquari, RS.